Alberto Costa
advogado
A «Gazeta das Caldas» trouxe-nos há bem pouco a notícia de que ganhou vida na manufactura de porcelana local um presépio que foi oferecido ao Papa Francisco, na sua recente visita a Portugal. Além de tudo o mais, vai cultura neste presente que daqui sai para prosseguir em Roma a celebração do nascimento de Cristo, ocorrido aliás num império que lá tinha o centro. Um estímulo inesperado para que aqui me refira a um outro pormenor da visita… e o comente também em «território» inabitual.
Na sua primeira intervenção de fundo entre nós, o Papa quis homenagear a nossa cultura, citando – além do outrora proscrito Saramago – um conjunto de poetas, na sua maior parte conhecidos do grande público. Evocando expressamente Fernando Pessoa, começaria a citação pelo famoso «Navegar é preciso; viver não é preciso» (e digo famoso, não indo até Petrarca, porque até Caetano Veloso o usou, e já há muito, numa canção que correu mundo: «Os Argonautas»). De modo involuntário, sem dúvida, pode com isso ter induzido alguns em erro, silenciando assim uma parte da história, que decorre naquele mesmo império em que Cristo veio ao mundo.
Fernando Pessoa toma a cautela e a liberdade – que é sua – de dizer que «navegadores antigos tinham» essa «frase gloriosa». Segundo uma autora prestigiada, Pessoa foi buscá-la directamente a Plutarco, a que chegou através duma colectânea que possuía.
Seja como for, desde Plutarco(46-120 d.C.) que a frase é atribuída originalmente, sem controvérsia, a Pompeu(106-48 a.C.), o conquistador romano de mais de novecentas cidades, «triunfante na África, na Ásia e na Europa» – incluindo na Judeia, onde terá profanado um templo sagrado, e na Península Ibérica, onde «triunfou» eliminando Sertório e a resistência lusitana que com ele estava. Falamos de um político e general aclamado, em seu tempo, como o maior dos romanos e não de um «navegador antigo» saído de Sagres, como se poderia erroneamente julgar.
Numa fase em que Pompeu detinha a missão crítica de garantir o abastecimento de cereais a Roma, diz o seu biógrafo Plutarco que ele enfrentou um motim de marinheiros e remadores que não queriam, para esse fim, fazer-se a um mar em que arriscariam as suas vidas, soltando nessa ocasião a «gloriosa» frase: «navegar é preciso, viver não é preciso».
A agravar tudo está o facto de Pompeu ter chamado a si boa parte da «glória» pelo esmagamento da revolta de Spartacus(73 a 71 a.C), uma das maiores revoltas de escravos do mundo antigo, e que dificultara muito o abastecimento da cidade. Isso representou, é preciso lembrá-lo, cerca de seis mil escravos crucificados ao longo da Via Apia – afinal o mesmo bárbaro suplício que Roma, no século seguinte, viria a aplicar a Jesus Cristo.
Constitui uma amarga ironia que tenha podido voltar a «viver», na Europa de hoje – com diferente sentido, é certo – a frase que começou por ser uma «gloriosa afirmação» de um conquistador com este perfil, como muitos sabem. Duma coisa estou certo: se quem aconselhou o Papa Francisco para o rol de citações o tivesse informado destes antecedentes da frase, ele teria sido o primeiro a querer substitui-la por outra! E Pessoa tem muitas, fantásticas, para a troca… ■ vistodafoz@gmail.com