Zeca Afonso no Panteão

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Fomos desinquietados há umas semanas atrás pela Direção da Sociedade Portuguesa de Autores, com a notícia de que esta entendia que o seu sócio mais relevante deveria ser trasladado para o Panteão Nacional.
Porque não o José Afonso no Panteão?
Porque a família não está de acordo.
Porque o próprio deixou claro que queria que o seu corpo fosse enterrado em Setúbal e em campa rasa.
Tal desígnio está cumprido.
No entanto, eu ouço, sinto e encontro o Zeca em todo o lado.
Ele nunca deixou de estar em Coimbra, na Meia Praia, no Aljube, onde ainda hoje as suas músicas ecoam, distintas, e os seus poemas estão escritos a tinta indelével e invisível.
Ou em Caldas da Rainha a Banhos.
Quem não o encontra no Café Central, sentado, com ar humilde, risonho, mas determinado, depois de mais uma sessão no Hospital Termal, onde procurava ajuda para combater as suas maleitas?
Ou na Quinta de St. António (na Azenha), onde, numa noite memorável, a convite do Luís Barreto, juntou uma vasta família, iludindo a Pide, e se cantaram os Vampiros e se deu voz à liberdade?
A família do José Afonso foi crescendo, os amigos (família?), iam vendendo os seus discos por baixo da mesa e autografados.
Nunca deixou de inquietar, mesmo quando o tentaram travar por mais de uma vez.
Havia nesta cada vez maior família, gente sempre disposta a fazer chegar as suas músicas proibidas aos muitos que as queriam ouvir.
Todos nos lembramos do Renato, que no café Central, ía fazendo chegar os LPs aos muitos que os desejavam ter.
Com a sua voz, com a sua palavra, o Zeca foi acartando para a sua família, cada vez mais pessoas que arrancava do conforto plácido, pérfido, inquietando os mais adormecidos, levando-os a engrossarem a grande família que haveria de se juntar toda em Abril.
Nunca deixou de inquietar, mesmo quando o tentaram travar por mais de uma vez.
Quem não foi ao chamamento do “Venham mais Cinco”? Quem não se sentiu “Formiga no Carreiro”?
Em Maio, as cantigas tinham mais flores. Em Abril, tornaram-se em cravos.
As suas músicas e os poemas que hoje e sempre nos canta são idealismo sem amarras.
A verdade é que muitos se sentem da família. Somos família sua. Sim, somos da grande comunidade de que ele foi protagonista. Que ele patrocinou.
Comunidades (família?) em que alguns levaram tão a preceito esses laços, tão disponíveis estiveram, que até na reclusão foram parceiros. Não se abandona um familiar.
O José Afonso deve estar onde mais falta agora faz. Não por ele, mas pelo futuro.
Eu sei que há o som das suas palavras e da sua música.
Os inimigos da cultura da liberdade de expressão, pululam por ai.
A tarefa não esta acabada. A vida diz-nos que a luta pela liberdade nunca pode ter descanso.
O José Afonso deve estar onde mais falta faz. Não por ele, mas por nós. A comunidade e, pois claro, como sempre, a sua família. Segunda. Não pela vaidade, mas pelo futuro. Primeiro.
Deve estar onde o seu legado possa ser melhor perpetuado.
Que me perdoe a Família primeira do Zeca.
O que ele fez foi juntar à sua primeira, uma segunda gigante família, que hoje se acha em ter a possibilidade de opinar, se sim ou não no Panteão.
Eu digo. Onde melhor se defenda o seu legado.
No Panteão.

Jorge Sobral