Era alto, pesado, maciço. Cabelo branco cortado à escovinha, uma barba sedosa e encaracolada caía-lhe sobre o peito. Os pés eram pequenos para tão grande peso e para tal estatura. Usava bengala para se apoiar. Sempre de fato completo: casaco, calças, colete, tudo cor de cinza, camisa branca. Gravata vermelho cereja. Era o senhor doutor, assim lhe chamavam todos, quando o queriam cumprimentar. Tinha sido professor de línguas e de música, estava aposentado.
Todos os dias saía de casa, manhã cedo. Quando entrava no Café Varzim, na mesa preferida,junto à janela, já o Sr Jerónimo, o patrão, lhe tinha colocado sobre o tampo o Comércio Poveiro, o seu predileto. Não precisava dar mais do que os bons dias. A Dona Eulália, já lhe estava a preparar a torrada com manteiga e o cafezinho.
-Hoje vai o queque?
Umas vezes dizia que sim, outras dizia que não. O queque era assim como que um capricho. O médico de família, o Dr Palha, andava a ralhar-lhe por causa do peso e por isso o senhor de idade, de vez em quando, continha-se no gosto pela gulodice.
Quem estava sempre à espera do senhor do cabelo cortado à escovinha com a bela barba branca de pai natal, era a neta do casal proprietário do Café Varzim. A menina Belinha. A Belinha tinha deixado de frequentar a escola no fim do segundo ano, porque tinha a vista muito cansada e o médico recomendara que não esforçasse os olhos para não perder a pouca vista que tinha.
A menina era muito silenciosa, mas o silêncio era aplicado no estudo que fazia sobre as pessoas, os acontecimentos do dia a dia e também na continuada observação do comportamento do gato que os pais lhe tinham, finalmente, oferecido depois de muitos pedidos. Ela não queria esquecer a leitura nem a escrita. Agora só a deixavam ocupar-se a ler uma hora por dia.
O senhor de idade, o senhor doutor, tinha sido precioso para os pais tomarem a decisão de oferecerem o Zende à filha. Tinha sido ele mesmo que, depois de ouvir no café as várias discussões entre os avós Jerónimo e Eulália, tinha trazido o gatinho, membro de uma ninhada da gata Ofélia, a felina dengosa da sua vizinha do lado esquerdo, a vizinha que vinha todas as semanas dar-lhe um arranjo carinhoso à casa .
E do alto do seu estatuto de antigo professor cheio de prestígio entre antigos alunos, aconselhou aos pais da Belinha, darem esse prazer à filha que não ia à escola e por isso tinha perdido muitos amigos.
A Belinha, com o Zende no colo, esperava que o senhor doutor bebesse o café e comesse a torrada. Depois ela sabia que ia seguir-se o ritual. Primeiro ele ia tirar do bolso do colete um lápis e um afiador com o qual rolava uma ponta afiadíssima.
Abria o jornal e folheava assim com um ar meio distraído até à penúltima folha. Aí dobrava o jornal em dois e começavam a fazer as palavras cruzadas. A Belinha aproximava-se. Sentava-se na cadeira ao lado, com o gatinho no colo. Este ronronava.
O senhor de idade levantava o lápis e murmurava a primeira palavra a descobrir:
– Morada,quatro letras- e mordiscava o lábio.
A Belinha, com os olhos quase cerrados respondia:
-Casa!
O senhor doutor, deleitado, escrevia.
-Agora na vertical temos tulha, sete letras.
-Celeiro, alvitrava a Belinha.
O senhor doutor sorria. Os pais da menina tinham desistido de lhe dizer para ela não importunar o senhor de idade. Já tinham percebido que ele gostava de ensinar quanto podia à menina cujos olhos sofriam.
-Agora na segunda horizontal temos mulher, três letras.
-Ela, adiantava a Belinha.
-Muito bem. E escrevia a nova palavra com o lápis de serviço. E a palavra ela é um..
– Pronome pessoal. Acrescentava a menina.
No fim da primavera, a Belinha fez dez anos.
O senhor doutor Valdemar trouxe um documento para os pais da Isabel Maria assinarem. Ele queria apresentá-la ao exame do quarto ano. Como aluna externa. E os pais, estupefactos, perceberam o trabalho que o senhor doutor e a menina faziam ao solucionar as palavras cruzadas do Comércio Poveiro.
Beatriz Lamas Oliveira
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