A galinha da vizinha… O cemitério de S. João

0
951

Corro o risco de o nome desta crónica afastar quem se assusta com esta palavra comprida e fria, ce-mi-té-ri-o. Mas vou deliberadamente correr esse risco.
O cemitério de S. João em Óbidos fica fora da Vila, por trás da antiga capela de São Vicente dos Gafos – porque ali existiu outrora uma leprosaria -, mais tarde igreja de São João Batista, onde está agora instalado o museu paroquial, e serviu durante décadas como casa mortuária.
Partindo da igreja e até ao antigo matadouro, onde funcionou até há pouco tempo a Rádio Litoral Oeste, existe uma alameda frondosa, calma e silenciosa, pela qual temos de passar para chegar ao cemitério.
Em crianças, este espaço era-nos familiar. Nesse tempo, a morte fazia ainda parte da vida e não se assistia à ‘desnaturalização’ do morrer que hoje se tornou comum. Aos sábados, fui muita vez arranjar a campa dos meus antepassados com a minha avó. Era normal.
Era normal encontrar gente a tratar daquele espaço, famílias, avós, netos. Era normal conversar com o Sr. Alberto Pinto, o coveiro, que tinha sempre histórias para contar. Era normal conhecermos os jazigos e as campas e sabermos quem ali estava. Uma espécie de ‘sociedade obidense dos que já partiram’, ali, naquele espaço em socalcos. Estranho, aos olhos de hoje, este convívio com os que antes de nós habitaram a nossa terra.

O dia de fiéis defuntos, ou dia de finados, que se celebra a 2 de novembro, levava toda a gente ao cemitério, mesmo aqueles que durante o ano eram menos assíduos. Era então que se fazia grande limpeza aos túmulos, grandes arranjos e se enfeitava tudo com imensas flores, tradição que se vai mantendo. Mas no dia-a-dia, durante todo o ano, aquele era um espaço limpo e cuidado, caiado de um branco imaculado, sem ervas daninhas.
Regresso às vezes ao cemitério de S. João. Ali está parte da minha família, ali estão muitos amigos.
É impossível não reparar no cenário desolador. Lixo acumulado. Jarras e flores velhas pelos cantos. Ervas espreitando por todo o lado. Muros em tão mau estado, todos eles, que há por lá fendas entre muros em que cabe uma mão travessa. Estão pretos, sem cal e sem reboco. Remendos nas paredes, em cimento, que nunca viram cal. Em algumas zonas não há pavimento, pelo que, quando chove, é um lamaçal que não se pode andar. À porta de entrada jaz – nunca este verbo teve aplicação mais certeira – um monte de areia, espalhada para vários lados. E cá fora, os muros da alameda estão também uma lástima.
Outrora estava disponível equipamento para se tratar das campas. Hoje, restam dois baldes em miniatura e um regador também mínimo – daqueles que temos em casa para regar uma pequena planta -, que talvez leve meio litro de água. Temos de levar utensílios de casa, não há alternativa se queremos cuidar das sepulturas.
Outra coisa que não compreendo é o espaço ficar aberto permanentemente. Não há hipótese de fechar o portão ao anoitecer? Será necessário que aconteçam atos de vandalismo para se porem trancas à porta naquele espaço sagrado?
O cenário é desolador, o desleixo é manifesto. Deixou de haver coveiros afetos à função, que cuidem, mas não será possível haver uma brigada de trabalhadores que tratem e mantenham os cemitérios municipais?
As memórias dos que ali estão e que nos antecederam, as nossas próprias memórias, de cada um de nós que ali vamos, merecem o respeito de um espaço cuidado e limpo. Simples e digno.

Cristina Rodrigues
gouvarinho@hotmail.com