Embora não disponha de dados estatísticos sobre as representações e as atitudes por camadas sociais e por regiões geográficas, ao longo dos últimos anos, em relação à tourada, verifico que hoje, excetuando o Ribatejo e o Alentejo, ela é um tema fraturante: de um lado, os aficionados, seus adeptos fervorosos; do outro lado, os seus opositores exaltados; ao centro, a nebulosa dos restantes, cuja aparente indiferença pode ser talvez uma enorme dúvida afivelada.
O dilema que na oposição das posições se apresenta ao pensamento e à ação parece não ter saída, exceto optando por um dos lados da barricada, com exclusão do outro.
É preciso elevar a questão ao plano do pensamento, inventariando razões, vendo os seus limite, para que a decisão a tomar seja consciente e responsável.
A ancestralidade da tourada, que se manifestou nas culturas mediterrânicas desde um período pré-cristão e que se foi mantendo com altos e baixos ao longo da história, sobretudo nos países ibéricos até aos nossos dias, é a mostra de que o seu valor intrínseco desafia a voragem do tempo.
Nos últimos dois séculos, a decantação estética da tourada foi-se operando, formalizando-se o vestuário do cavaleiro (ao jeito da indumentária da corte francesa de Luís XV) e dos forcados (como o que vestiam os rapazes no séc. XIX), ajaezando-se os cavalos, ritualizando-se todo o teatro da ação do espetáculo.
Neste quadro, decorre a práxis artística do cavaleiro e forcados, fruto de uma longa aprendizagem e com exigências próprias (destreza, domínio, sagacidade, coragem) e cuja finalidade visa alcançar na brega a vitória sobre o touro, o qual simboliza a energia e a força telúricas.
Há neste confronto do cavaleiro com o animal uma significação antropológica funda: se o homem não vence a natureza não se afirma na sua humanidade e acaba por ficar prisioneiro da sua própria animalidade.
É preciso assim que o cavaleiro corra o perigo, mesmo mortal, expondo-se ao insucesso da sua empresa, sendo necessário o aprimoramento da sua arte para que por toda a praça soe o clamor dos olés ululantes, ritmados pelas palmas e pela emoção arrebatada da multidão.
Esta matriz cultural da tourada ficou incólume com os tempos modernos, pois também estes assentaram numa conceção antropocêntrica em que o homem, vértice da pirâmide cósmica, deve tornar-se dono e senhor da natureza.
Contudo, assistimos hoje à falência desta grande metanarrativa da soberania do homem sobre a natureza no seu conjunto, com a descoberta dos efeitos perversos (o desastre ambiental e o esgotamento dos recursos naturais) em larga escala da nossa intervenção técnica.
A crise ecológica dos séculos XX e XXI foi a consequência direta da desproporção enorme entre a vastidão do conhecimento existente e a estreiteza do juízo moral.
As ciências biológicas (bioquímica evolucionista e ecologia) acabam por revelar a existência de funções inerentes a toda a forma de vida, pelo que o juízo que as expressa é necessariamente de valor, uma vez que a descrição do facto se acompanha de procedimentos de interpretação e de decisão.
Quer as formas de vida na sua riqueza múltipla, quer as funções vitais manifestam assim, pela sua simples presença, independente da subjetividade humana, determinados valores naturais universais às culturas.
Em que consiste então a natureza do valor natural?
Consiste num duplo movimento em que o sujeito que contempla uma cena envolvente nela se internaliza e em que esta cena se insinua dentro daquele: uma associação entre o polo objetivo e o subjetivo, dando azo à emergência de um modelo ecocêntrico, em que o valor da consciência se insere no valor natural objetivo e este se afirma categoricamente como constrangedor para a consciência.
Neste novo modo de pensar, emerge uma ética objetivamente fundada na natureza, que abrange todo o mundo animal e dando lugar ao surgimento de uma ética animal, que estabelece os direitos dos animais que impõem alterações nas nossas práticas sociais.
E voltamos ao dilema referido: manter a estética da tourada à custa da ética animal ou optar por esta em detrimento daquela?
Que fazer neste quadro conflitual?
A persuasão, a tomada de posição social, a sugestão de propostas alternativas deverão ser a bandeira dos que perfilham este ideário.
E porque não tornar a tourada uma memória, dando novo fôlego e dignidade ao Museu da Equitação e Toureio, obra de Paulino Montez que a incúria deixou estragar em grande parte?
Vasco Tomás