O lugar onde nascemos é o nosso bilhete de identidade (o cartão de cidadão exprime direitos cívicos e uma geografia mais ampla). Os caldenses são conhecidos por «Águas Mornas», não por sofrerem de qualquer apatia congénita, mas por terem nascido numa cidade e concelho que têm na sua génese uma poça fumegante de água sulfurosa sobre a qual se edificou um Hospital.
Sendo as nossas termas um fator de identificação, qualquer caldense no estrangeiro arrisca-se a ser questionado sobre elas e a ficar numa situação deveras embaraçosa.
Foi o que me aconteceu em Freiburg, num alojamento local. O dono do apartamento, amante e profundo conhecedor de termas, quando soube da minha proveniência contou-me esta pequena história: viu num velho livro alemão uma referência ao Hospital Termal mais antigo do mundo; pesquisou na net e adquiriu passagens aéreas para Lisboa, para ele e para a família; chegados à capital, alugaram um automóvel e deslocaram-se às Caldas, onde se depararam desolados com o Hospital Termal temporariamente encerrado. Regressaram inconsoláveis à Alemanha e aguardam uma segunda oportunidade. Com um inútil sentimento de culpa, falei-lhes da famigerada bactéria, tentando justificar o súbito encerramento.
Durante vários anos, os administradores hospitalares mantiveram o funcionamento intermitente das nossas termas, com encerramentos repentinos e temporários sempre que havia vestígios da bactéria nas periódicas análises da água, até à total perda de confiança de quem as procurava, sem um investimento que devolvesse aos caldenses e aos seus visitantes o Hospital que integra o ADN da cidade.
«Ir a banhos» no Hospital Termal é uma experiência única, como se atravessássemos uma qualquer fronteira do tempo. A grandiosidade arquitetónica joanina, os velhos equipamentos preservados, o silêncio que ecoa nas salas amplas, o espaço de repouso onde se resvala para uma irresistível sonolência, tudo nos remete para a história de vilegiaturas imemoriais: de reis, príncipes, clérigos e nobres; de plebeus famintos, e esfaimados; diferentes na vida e na doença, igualizados na morte que tudo nivela, indiferente ao berço e aos privilégios.
O encerramento definitivo de uma instituição que presta assistência há mais de 500 anos e que com algumas obras reunirá condições para continuar a sua missão histórica, seria um ato intolerável, injustamente lesivo do património histórico e afetivo dos caldenses.
Ninguém se pode sentir confortável com a paralisação, ainda que temporária, dos serviços do velho Hospital Termal, onde permanecem vivas memórias que os caldenses herdaram, nas quais se identificam. Fala-se de reabertura. Pois, que seja breve e definitiva. Que voltem a jorrar das antigas fontes, para tratamento de quem nos procura, as «Águas Mornas» em que nos revemos.
Carlos Querido