Comunidade

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Celeste Afonso
diretora cultural executiva

Diariamente, a dor, o sofrimento, a guerra, as catástrofes ambientais entram-nos pela casa dentro. Invadem a nossa privacidade e instalam-se, ocupando um espaço difícil de gerir. Emocionamo-nos, choramos, indignamo-nos… partilhamos nas redes sociais, colocamos molduras na foto de perfil para mostrarmos o nosso apoio às grandes causas. São os rituais catárticos! No supermercado, colocamos massa e arroz no saco dado à entrada pelos voluntários do Banco Alimentar porque a desgraça anónima move-nos e comove-nos.
O vizinho do rés-do chão está desempregado. No nº 13, vivem cerca de 20 imigrantes e a noite tem sabor a açafrão e a caril. O Miguel contou que o Luizinho está sempre triste e que tem nódoas negras no corpo. A professora encaminhou o caso para a CPCJ. Os vizinhos do 4º E continuam a discutir todos os dias. Ontem, o bebé não parava de chorar. A mãe também chorava e gritava.
Fechamos a porta e as janelas de vidro duplo e as dores, o sofrimento, as guerras e as catástrofes dos vizinhos ficam do lado de fora, sem direito a post, hastag ou a moldura.
Vivemos, cada vez mais, a vida que chega pelos ecrãs na ilusão de sermos cidadãos do mundo. Globalização.
Mas para sermos cidadãos do mundo temos, primeiramente, de exercer a cidadania local. Glocalização.
Não conseguimos acabar com a guerra ou com a fome no mundo, mas podemos fazer a diferença no nosso prédio, na nossa rua, no nosso bairro, colocando em prática o exercício efectivo da Fraternidade. Comunidade.
A antropóloga Margaret Mead identificou como primeiro sinal de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. Nos primórdios, um ser ferido estava condenado à morte por não conseguir acompanhar o grupo. Um fémur humano quebrado e curado marca um estádio completamente novo: o ser ferido não foi deixado para trás. Foi cuidado e acompanhado até recuperar. Comunidade.
Como nos lembrou Tolentino Mendonça, “A raiz da civilização é a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa.”
Ao longo de um ano, usei este espaço para reflectir sobre temas globais a partir de assuntos locais. Entendo a cultura no plural, como um conjunto de sistemas simbólicos nos quais estamos inseridos e que nos permitem entender o mundo e dar sentido à experiencia individual e colectiva. Pensar a educação, o património, a liberdade de expressão e a democracia, entre outros temas, é pôr em prática a cidadania cultural que fortalece a democracia. Ao longo de um ano, mensalmente, procurei ser parte da comunidade. À Gazeta das Caldas e a todos os que me leram e comentaram, obrigada por tanto! ■

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