Tó Freitas e Mário Soares

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Nos três meses decorridos sobre a morte do Dr. Mário Soares mais se me aviva a imagem que as televisões deram do meu Amigo de sempre – o Tó Freitas – a entrar no Mosteiro dos Jerónimos tocado de profunda emoção e sensibilidade, com o rosto em lágrimas que reflectiam a  tristeza do derradeiro instante da despedida.

Por elas, pude ver o que estava para além do instante fugaz que as imagens trouxeram até mim.  Sei o que o Tó sentiu ao vertê-las com genuína sinceridade: foi todo um passado, reportado a décadas distantes, quando Mário Soares conviveu,  fraternalmente, com a família Maldonado Freitas em Caldas e na Foz do Arelho.
Nas lágrimas do Tó Freitas, a par da saudade de Mário Soares, que nos deixava, eu vi a saudade do Tó pelo seu Pai, o Dr. António Maldonado Freitas, que partiu no tão distante ano de 1975, ele que foi um companheiro de sempre de Mário Soares, solidário e amigo, lutadores pelas mesmas causas em épocas em que a prossecução de um ideal discordante  era retribuída  com austera  privação  da liberdade.  Recordo o funeral do Dr. António quando, a seguir ao elogio fúnebre feito por Vasco da Gama Fernandes, a Mário Soares foi sugerido que dissesse também  algumas palavras, tendo-lhe ouvido dizer, por  palavras só audíveis pelos que lhe estavam próximos : o que consigo eu dizer por um irmão que me deixa?
Nas lágrimas do Tó Freitas estaria ainda a recordação da solidariedade do Pai para com Mário Soares – aquela solidariedade que eu próprio, ao tempo, tal como o Tó, estudantes no Colégio Ramalho Ortigão, presenciei na Pensão Estremadura (então propriedade da família Freitas) quando almoçava na mesa com o Dr. António, e que recordo: eram quase três da tarde, quando, olhando o relógio, o Dr. António diz: “tenho que ir à Caixa [Geral de Depósitos] levantar dinheiro [bem longe ainda do surgimento dos multibancos…] porque está a chegar aí o Mário Soares, que precisa de dinheiro” – eram períodos em que a família Soares teria as contas bancárias “congeladas” pelo regime.
Nas lágrimas do Tó terá estado, também, a recordação do tio Artur Freitas que salvou Mário Soares das ondas do mar da Foz.  Quando,  Presidente da República, o Dr. Mário Soares foi ao INATEL inaugurar uma exposição do Dr. Vasco Trancoso, ao passar pelo meu Pai, o Dr. Artur apresentou-o a Soares, tendo este dito que devia a vida ao apresentante!
Em 2015, ao encontrar, ocasionalmente, o Dr. Mário Soares  num restaurante de Lisboa, quando saía, cumprimentou cortesmente a minha mesa. Levantei-me para o saudar e quando lhe recordei a família Freitas, vi na expressão dele, então já em grande declínio físico, uma incomensurável expressão de nostalgia quando me referiu o enorme prazer que lhe trazia a lembrança do Tó e da Família!
Não posso omitir que, nas páginas da Gazeta, em contexto e por tema abissalmente oposto ao presente, escrevi, há cerca de dois anos, que se impunha a Mário Soares uma postura diferente para com a Família Maldonado Freitas resultante de comentários que  então teceu…
O que vale agora isso, perante o enorme significado e respeito que as lágrimas do Tó Freitas vertidas sobre o caixão de Mário Soares representam?
Naquele dia, há três meses, nas lágrimas do Tó Freitas, terá estado ainda outro tempo (bem  mais longínquo)  ao recordar o seu avô Custódio – o Pai Freitas, como era conhecido, que, com o pai de Mário Soares – o Dr. João Soares -, irmanados nos mesmos ideais, lançaram as raízes do convívio e da cumplicidade  que projectaram   nas descendências de ambos.
E como a vida é também feita da memória do tempo, recordo o convívio entre a Família Freitas e meu Pai. Muitos anos de vida profissional em comum – as farmácias – tiveram na génese um gesto de invulgar nobreza e honra: comprada por meu Pai a farmácia de A-dos-Francos a João Maldonado Freitas, tio do Tó, ambos se bastaram com a “’palavra” na compra e venda, dispensando, ao tempo, a formalidade legal e notarial que tornava o negócio juridicamente válido – situação mantida por vários anos.
Foi ainda à recordação do convívio entre a minha família e a do Tó que as suas lágrimas me transportaram quando entrava nos Jerónimos para chorar Mário Soares no acto da  sua hora derradeira.

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Luís do Nascimento Ferreira

 

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