Elogio da Imperfeição – Ninho de cucos

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Noticias das CaldasÀs vezes gosto de fazer como os cucos… só que em vez de ocupar ninhos de outros, ocupo histórias… histórias de outros que acabo por tornar minhas.
A minha amiga que trata das doenças do coração, do coração mesmo, sem metáfora… e que gosta de pessoas, tem um manancial de histórias do qual gosto de roubar uns bocadinhos…
Esta é sobre um homem por volta dos 80, com um coração que por vezes se descontrola e o faz recorrer ao hospital em susto.
Desta vez o susto havia sido maior e tinha ficado internado. Ela ficou a assisti-lo. Vão conversando noite dentro…

Que tinha vários filhos, apesar de nunca o ter propriamente programado. Tinham surgido e foi aceitando. Aliás ao longo da sua vida tinha aceitado muita coisa que não sabia se queria.
Quando era novo, antes de casar, tinha sonhado sair, ir para outro país… até para outro continente. Não era tanto por razões económicas… era mesmo por curiosidade, por vontade de viver outros mundos. Filho único, sentia que tal seria uma afronta para os pais, mas se outros o faziam, porque não também ele?… Os pais diziam e faziam sentir que estavam a construir uma vida para ele e para os futuros filhos dele… mas não lhe perguntavam se era o que ele queria. Seguramente os pais sim e precisavam disso, como se de uma medalha de mérito se tratasse e fizessem questão de exibir.
Nunca percebeu bem, se por falta de coragem se mesmo só por amor, se deixou amar, amou e acabou por casar, com uma mulher que achava bonita, forte, alegre, mas de pés bem assentes na terra e sem espaço para aventuras em mundos desconhecidos e inseguros.
Com o “sim” no altar, aceitou o destino de ficar… sabia que não estava só a dizer que aceitava aquela mulher como esposa, para amar e cuidar. Sabia que estava a aceitar todo um resto de vida, preso a um lugar que o cansava e a uma vida que não o entusiasmava. Mal ou bem, tinha feito essa escolha. No fundo sabia-se sonhador e insatisfeito, mas sem a coragem do risco sem uma rede de segurança.
Que não, não culpava a mulher pelo abdicar dos projectos de fugir da vida que lhe foi desenhada por outros. Se calhar tinha-a escolhido para amar exatamente como forma de não poder partir, de não admitir o seu medo e a sua culpa perante os outros. E tinha-a chorado sinceramente, com saudade, quando um estúpido acidente a fez desaparecer e o deixou com um coração cada vez mais caprichoso e frágil.
Pensava muito nos filhos e nos rumos que as vidas destes tomaram… Costumava pensar que a sua vida tinha sido muito mais simples do que a deles… que alguns deles tinham feito escolhas arriscadas e complicadas…
Um dia confidenciou este pensamento a uma das filhas. Saiu assim em conversa, como uma coisa qualquer que se diz e que não pára ninguém… mas a filha parou… fez um pequeno silêncio e disse: “O pai acha mesmo isso?… Que engraçado… sabe? Eu costumo pensar que nós, os seus filhos, acabámos por escolher os caminhos que o pai desejou mas não lhe foi possível viver…”.
Nunca mais conseguiu tirar esta conversa da cabeça… sem perceber se era bom ou se era mau… tinha percebido isso sim que a sua história estava muito mais ligada à dos seus filhos e à dos seus pais do que aquilo que pensava… Afinal, nada era simples…
E eu não resisti… roubei esta história e escrevi-a.

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