Entretempos – A nossa praia

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Dóris Santos
historiadora de arte e museóloga

O verão da minha juventude era longo e aprazível. Dias cheios, repartidos entre os avós e a família emigrante que regressava em agosto, os convívios com os amigos nas garagens, nos acampamentos ou nas escavações arqueológicas. E era o tempo da praia!
Todos temos a “nossa praia”. A minha era a Praia da Areia Branca, para onde nos mudávamos durante um mês, de malas aviadas, bicicletas incluídas, instalando-nos numa modesta casa alugada à Ti Celeste. A barraca ficava reservada ao Ti Augusto de ano para ano, lado a lado com as dos amigos de verão. Tardes passadas a jogar às cartas, caminhadas ao longo da areia espelhada, as marés vivas quando nos divertíamos a construir muralhas de areia. Mas a hora do banho era a mais ansiada e não havia borriço do Oeste que nos demovesse. Uma vez por semana, era permitido um gelado (da Olá!) e comprar um livro: primeiro bandas desenhadas, depois as aventuras, até ser a vez dos clássicos.
Mas a “invenção da praia” (Alain Corbin) é recente, assim como o direito às férias. Só a partir do séc. XVIII e sobretudo ao longo do séc. XIX, a moda de “ir a banhos” se difundiu pela Europa, seguindo as orientações medicinais; a estas, rapidamente se juntando (ou sobrepondo) os encantos do ócio.
Na nossa região, a Foz do Arelho, S. Martinho do Porto e a Nazaré destacaram-se como as estâncias balneares mais procuradas. Em 1876, o hábito já estava bem difundido e Ramalho Ortigão dava conselhos aos banhistas em “As praias de Portugal”. Bordalo Pinheiro preferia o humor, enumerando nas suas caricaturas as “rasões porque se toma banho” ou os “tipos de banhistas”, desde os que iam por ordem do médico às meninas para casar.
Da matinal hora do banho, Júlio César Machado comentou o assombro perante a ousada revelação do corpo através do fato-de-banho. Escreve em agosto de 1899 (“O Povo da Nazareth”): “É surpreendente a variedade e o bom gosto das toilletes com que as gentis damas caminham triumphantes por entre as alas dos seus admiradores extasiados, pisando a medo a areia fulgente e indo mergulhar as suas formas divinaes nas águas cor d’esmeralda (…)”.
Esta descoberta social do litoral mudaria a paisagem e a vida das comunidades locais. Os pescadores tiveram de partilhar o seu mundo com os veraneantes, mas cedo perceberam que também podiam colher benefícios: tornaram-se “banheiros”, passaram a alugar barracas e as suas casas ou a promoveram passeios de barco.
As praias competiam entre si para dar a ideia de modernidade e higiene; encomendam-se planos urbanísticos, erguem-se chalets, organizam-se excursões, bailes e eventos desportivos. O ano passou a dividir-se entre o penoso Inverno e a euforia do Verão.
Já dizia Raul Brandão, no livro “Pescadores” (1923): “Para o sul da Nazaré, pesca-se na Foz do Arelho, onde os homens ergueram palácios em frente do mar, o que me parece fora de todo o propósito; diante do mar só uma construção transitória, uma barraca, é que fica bem”. Conjeturava a decadência das comunidades piscatórias, vítimas dos empresários que viam na vilegiatura aristocrático-burguês uma nova oportunidade de negócio.
Os lugares turísticos são espaços socialmente construídos; o fenómeno social da praia traduziu-se numa pressão crescente no meio costeiro e a predição de Brandão confirmou-se. Hoje, ansiamos pelo raro apanágio das praias desertas e genuínas!
Mas todos temos a “nossa praia”, mesmo que fantasiada, onde não há ontem nem amanhã, mas simplesmente a alegria do viver (“joie de vivre”). ■