«Francisco» de João Abel Manta. José Fanha e José Brandão

0
610

A capa deste livro não cabe no tamanho «A4» da máquina que a regista e divulga na Internet. Este facto é um dado «técnico» mas, ao mesmo tempo, uma questão sentimental. Porque este livro não cabe nas dimensões normais de um livro como os outros. Este não é um livro como os outros. Escrevo sobre livros desde Agosto de 1978 («Diário Popular») e a minha intuição diz-me que este é um livro diferente. Pela primeira vez o meu ofício hesita perante um livro-álbum que é um grande ponto de encontro e um lugar para muitos de nós estarmos juntos. E se escrevo «muitos de nós» é na certeza de que Portugal é um país de analfabetos, país de poetas que não lê Poesia, país de 10 milhões onde um livro como este tem uma edição de 500 exemplares. Apenas e só. Só e apenas. Mas vamos à nota de leitura sem mais demoras.
Tudo nele gira à volta do Francisco, criança de três anos, filho da Ana e do João. O menino sofre de paralisia cerebral e toda a família se mobilizou para o ajudar a vencer as limitações quotidianas impostas pela doença. Em Dezembro o pintor João Abel Manta (seu bisavô) criou 30 colagens e a avó Isabel Manta telefonou ao poeta José Fanha, seu colega nas Belas Artes nos anos 60, para lhe pedir uns textos poéticos que fariam par com os trabalhos de João Abel Manta numa prenda de Natal em forma de livro para a Ana e o João bem como para os netos Francisco e Maria. Eufórico mas aflito, José Fanha fez a si próprio uma pergunta que resumia a situação: «O que é que eu podia encontrar em mim que permitisse construir uma ponte de palavras e de silêncios entre o meu ofício de poeta e aquele menino que eu nem conhecia?» Depois de conhecer o Francisco, José Fanha ficou habilitado a poder alcançar os poemas deste livro dos quais escolho apenas três como representativos. No primeiro o menino dirige-se à mãe (Ana) num discurso de 8 linhas: «De ti para mim vêm as palavras pelo ar / e dizem quase tudo, mãe. / Por dentro das palavras que me envias / moram aves e sereias / moram pedras e baleias / e estrelas-do-mar sem fundo. / Pega nos teus lábios, mãe. / Faz nascer de novo o Mundo.» O segundo é dirigido ao pai (João) e ocupa 10 linhas: «Sem saber eu sei / que as tuas mãos / também tremem, pai. / Mas quando vêm tocar-me / eu fico cheio de luz. / Fico forte / mais forte que uma pedra. / Esse é o mistério, pai. / Nós os dois, / as mãos, a pedra, a luz.» O terceiro é um retrato de Francisco em 11 linhas quando o poeta se coloca na pele deste menino diferente para alcançar um poema diferente: «Eu não sei palavras de dizer / eu não sei palavras de falar / Tenho a mãe no meu olhar / Tenho as pernas a dançar / Sei sorrir e acender / uma luz, uma luzinha / mesmo cá dentro de mim. / Eu não sei palavras de dizer / eu não sei palavras de zangar /mas há dia sem que a boca / fica assim, assim, assim.» Na dedicatória deste livro o pintor João Abel Manta refere-se ao seu bisneto Francisco como «extraordinário, arguto e misterioso». Esta síntese aplica-se a este livro porque metade da receita da sua venda se destina à Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral. E assim se prova, entre sangue pisado e estilo, que um livro pode ser sempre (e é muitas vezes…) algo mais do que um simples conjunto de folhas de papel com desenhos e palavras.
(Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, Concepção e Ilustração: João Abel Manta, Texto: José Fanha, Design: José Brandão)