“Hoje ainda abre”

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Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência

Enquanto escrevo esta primeira crónica, numa manhã de sábado, olho pela janela do meu escritório. Está de chuva e cinzento.
Quando cheguei ao Oeste há vinte e três anos, depois de quase vinte anos lisboetas, estranhei as manhãs daquela humidade fria e cerrada, quase uma chuva morrinha, que se nos entranha até aos ossos. Estranhei essa melancolia acinzentada que, nos verões, nos entra pelas janelas adentro, sem pedir licença e indiferente às nossas expectativas de luz e sol. Em vez disso, traz-nos humidade a pingar dos telheiros e a neblina espessa a arrastar a maresia. E a mim, que nasci à beira do Índico, que cresci com a luz e a esquadria do Tejo acenando-me às esquinas das memórias da minha adolescência, custou-me um bocadinho a habituar a este “mau acordar” que o tempo tem por estas bandas.
“Ora, isto hoje ainda abre”, diziam-me as pessoas daqui, entre uma espécie de consolo e a incompreensão do meu drama climatérico. “Hoje ainda abre, mas, pelo sim, pelo não, leva um agasalho”.
E o que é certo é que têm razão, quase sempre abre. Nem que seja por um fugaz par de horas. E quando não abre, é questão de seguir o sábio conselho do agasalho, omnipresente na mala, pelas costas ou no banco de trás de carro (há aquela piada de que é fácil reconhecer alguém do Oeste no Algarve: é aquele que tem a camisola pelas costas).
Com os anos comecei a perguntar-me se seria apenas do tempo que as pessoas falariam com o seu “Hoje, ainda abre”. Se não estariam também, como quem não quer a coisa, a falar da vida. Se não seria esta expressão uma maneira das pessoas daqui nos dizerem que nos cabe a resiliência de esperar por “esse abrir depois de almoço”. E se não abrir, paciência, é questão de vestir um agasalho, que a vida, às vezes, constipa.
Talvez viver no Oeste nos ensine que a chuva e o cinzento fazem parte desta coisa a que chamamos vidinha. E é tão importante que nos lembremos mais vezes disto, especialmente nestes tempos de expectativas de realidades que nunca envelhecem, que nunca choram, que nunca falham, que nunca erram. De vidas perfeitas ou perfeitamente “photoshopadas”.
Viver no Oeste, talvez não seja para todos. É só para quem sabe que, por mais cinzento que o dia acorde, é ter a esperança de que “hoje ainda abre” e a sabedoria de que se não abrir, não faz mal, porque trouxemos um agasalho. ■

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