Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência
Há cerca de uma semana ficámos em suspense com o desaparecimento do submersível Titan nas águas do Atlântico Norte. A aventura, o contexto romantizado do Titanic, o risco e a espera pelo milagre, tornaram-se nos ingredientes perfeitos para uma boa história. A qual terminou tragicamente, com as piores notícias possíveis.
Ao longo dos dias de busca soubemos os nomes dos cinco ocupantes do submersível, soubemos que eram milionários, que dois deles eram pai e filho, que a mulher de um deles era trisneta de duas vítimas do Titanic, que tinham pago 250 mil euros por aquela experiência, o que faziam, as suas nacionalidades, idades. Chamaram para comentar o assunto todo o tipo de especialistas, altas e baixas patentes militares, o James Cameron, mais um jornalista que já lá tinha apanhado um susto. Só faltou entrevistarem o Leonardo di Caprio e a Kate Winslet.
Dias antes, também tínhamos assistido ao naufrágio de mais um navio de refugiados, no qual se perderam mais de quinhentas vidas, muitas das quais crianças. E os nossos olhos não se prenderam em suspense, lamentámos, claro, talvez até tenhamos dito, ai, coitados, aos pobres tudo lhe acontece, já não bastava a má sorte de que fugiam. Talvez tenhamos acrescentado dois ou três justíssimos comentários sobre o Mediterrâneo se ter tornado um cemitério, que a culpa é da guerra, das políticas de migração, dos governos, da Europa, do mundo. Depois, fomos à nossa vida, morreram quinhentos, mas antes já tinham morrido muitos outros milhares dos quais nunca soubemos o nome, de quem eram trisnetos, quanto é que tinham pago, em dinheiro e desespero, para fazer aquela travessia, nem o que faziam, quais eram os seus sonhos e medos. Só que eram pobres, e todos sabemos que essa característica nos apaga a identidade e nos torna apenas num número, numa estatística incómoda, que varremos para debaixo do tapete, ou para outro sítio bem longe da vista e das nossas vidas privilegiadas.
E o engraçado, se é que tem alguma piada, é que curiosamente as nossas vidinhas privilegiadas estão muito mais próximas das vidas daqueles 500 que morreram no mediterrâneo, do que dos 5 que morreram no Atlântico Norte. Estamos a menos passos de uma guerra, de um conflito, de uma crise económica que nos lance para a miséria do que nos tornarmos milionários.
E talvez seja por isso que os atiremos bem para trás das costas e da vista. Porque se não os virmos, não falarmos deles, não os vimos nem sentimos a nossa iminente vulnerabilidade e podemos continuar a fingir que a miséria só acontece aos outros. ■