Os trajes e o lenço denunciam-lhe a proveniência a Levante. A sombra no olhar obscurece a esperança que parece nascer-lhe timidamente no sorriso. Franzina e retraída, aparenta ter uma força vital obstinada e indefectível.
Encontrei-a há dias, numa das vendas da praça da fruta, a tentar ajudar e fazer com que o nosso Sábado de manhã corresse mais célere, substituindo as palavras que não conhece por gestos que deveriam ser universais e a não conseguir ultrapassar a condição de transparência que do outro lado teimavam em dar-lhe, mas sempre a sorrir e sempre a tentar.
Olhei-a de frente e pedi-lhe ajuda, apontando com o indicador para ilustrar as palavras que não conhecia, calma e pacientemente. O olhar acendeu-se-lhe, o sorriso firmou-se-lhe e lá continuou a vencer as horas da manhã.
Uma cidade de província é sempre uma cidade provinciana? Talvez não, mas a consanguinidade cultural e social que nela se gera é muitas vezes o manto pouco diáfano que nos impede de olhar para o outro como irmão e como igual – cidadão desta cidade universal a vaguear pelo espaço a que chamamos, apropriadamente, Terra.
O medo, dizem-me, explica este divórcio de uns homens em relação aos outros. Quando o medo é exagerado e cria aversão, chamamos-lhe fobia e prendemo-la a outras palavras, criando assim monstros que devoram a justa medida que nos faz parcela da humanidade.
Somos, todos e nas palavras de cada um, pessoas de boa vontade, cheias de qualidades e de virtudes, orgulhosos do contributo (quantas vezes exagerado, ou, pelo menos empolado) dos portugueses no Mundo, ufanos da nossa capacidade (nem sempre comprovada) de falar outras línguas sem sotaque que nos envergonhe sobremaneira e, curiosamente, é com dificuldade que sabemos comunicar com quem não fala a nossa língua e olhar para os que vêm de fora de maneira limpa e desassombrada.
Entre a subserviência e a sobranceria, entre a bajulação e o servilismo, recadejando ou patroneando, conforme a posição do interlocutor nos diversos patamares do mundo, lá vamos seguindo o nosso caminho quase milenar sem a menor vocação para olhar os outros de frente, como iguais, tomados apenas na sua condição de pessoas.
Sobretudo, vivemos a ilusão de que existem homens bons e homens maus, pessoas dignas de beneficiarem da trilogia igualdade, liberdade e fraternidade, e pessoas em quem a aplicação de tais princípios é um desperdício de recursos e boas vontades.
E a nossa proverbial dimensão universalista resume-se a chegar antes, onde os outros chegaram depois, sendo certo que tendo também saído depois de onde outros saíram antes, tarde e a más horas, numa cegueira de colonizadores brandos e respeitadores, que continuamos a cultivar e alardear, sem qualquer colagem à realidade vivida e à percepção que de nós têm os demais.
A história com que comecei, lamentavelmente, não está ainda completa. Dias depois perguntei à vendeira quem era aquela senhora do lenço e de onde vinha.
– Da Síria – respondeu-me e acrescentou – É refugiada. Não vai acreditar, mas ainda há dias uma cliente perguntou-me se eu não tinha vergonha de ter aqui esta pessoa e disse que ela devia era voltar para a terra dela!
E assim, entre a capa de invisibilidade que colocamos sobre quem foge da guerra e o insulto que leva a que se mande de volta para onde as balas voam e a terra arde, fica o registo deste pequeno episódio numa cidade de província onde os dias decorrem sem sobressalto.
Conceição Henriques
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