O doente entrou, confiante, no meu gabinete. Era um homem bem constituído, de costas direitas, aparentando menos que os seus 75 anos, afável no trato e muito seguro de si no discurso, até levemente arrogante. No cumprimento, notavam-se mãos grossas e fortes, denotando a rudeza de uma vida de trabalho no campo. Já frequentava aquela consulta há muitos anos e conhecíamo-nos bem. Vinha acompanhado da esposa, como sempre.
A sua doença crónica dos intestinos estava controlada há muito e aquelas consultas, com periodicidade semestral, serviam para dois dedos de conversa e para renovar a medicação.
Desta vez, porém, à primeira pergunta sobre o seu estado de saúde, referiu logo que andava um pouco queijoso nos últimos dias. Mas sabia do que era, afirmou categoricamente!… E ao dizer isto apontava com o polegar para a esposa, ao seu lado. Demorei uns segundos a perceber que a estava a acusar diretamente dos seus males da barriga.
E contou: “Há cerca de 15 dias, num sábado, fui almoçar com uns amigos. Coelho guisado. Até estava bom… No dia seguinte, e ela sabia, fez-me novamente coelho… E na segunda-feira, como tinha sobrado, apresentou-me outra vez coelho requentado. Ora, a barriga ressentiu-se…” Olhei para a esposa à espera de contestação. Mas não, ela parecia concordar. Em sua defesa, disse apenas que não era bem um refogado, era mais um estufado… E não teria havido outros exageros? Que não, que era muito regrado, nada de excesso de bebidas. E eu, conhecendo-o, acredito.
Esbocei uma tentativa de inocentar o coelho e a conversa continuou, animada. Falou do atendimento na receção. Que não percebia porque é que às vezes o consideravam isento de taxas moderadoras, outras vezes não. Se era para pagar, pagava. Se não era para pagar, não pagava. Se calhar são coisas do Centeno, brinquei eu. Abriu-se oportunidade para dizer que já pagamos muito de impostos e o que é preciso é que sejam bem encaminhados…
Entretanto, ouviram-se vozes altas, de mulher, no corredor, em conversas animadas, mais do que era suposto num hospital. O doente não se conteve: “Hi… Mulheres!… são umas fala-barato… Não se pode ouvi-las…” Eu virei-me para a esposa e disse, sorrindo: “Ele é machista…” A esposa manteve-se seráfica e não comentou, mas não parece ter apreciado a brincadeira do médico. Continuemos. Passei à prescrição das análises, da medicação e marcação da próxima consulta. O cartão? A mulher é que sabe.
Despedimo-nos com cumprimentos afáveis, como sempre.
E eis a minha última crónica! Poderia ter voltado ao assunto dos cuidados hospitalares, comentando noticia recente, mas já é de todos conhecida a minha opinião concordante com as conclusões do relatório da OesteCIM: é necessário manter investimento nas atuais instalações e é premente programar um Novo Hospital que sirva toda a região Oeste. Assim, nesta Letra de Médico, deixo pistas de reflexão sobre esse extraordinário diálogo entre o cérebro e o intestino…
António Curado
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