Quando em 1984 se dividiu a cidade de Caldas da Rainha em duas freguesias, com a formação da Freguesia de Stº Onofre, era expectável que se esbatessem as assimetrias, entre aquilo que estava de um e do outro lado da “linha”. Porque há efetivamente uma “linha” que separa duas realidades.
Aquele lado da cidade, construído a partir da formação de vários bairros, que se uniram pelo crescimento, não tiveram um suporte planeado, pelo contrário, desenvolveram-se de forma errática e a união fez-se ao acaso, resultando daí um espaço sem identidade urbanística. Ao longo do tempo foi motivo de “remendos”, que nunca resolveram questões básicas, como a qualidade de vida dos seus habitantes, sempre longe dos padrões vigentes no outro lado da cidade.
Nem a construção de diversos equipamentos de vocação cultural, educativa e desportiva, foi oportunidade para uma articulação urbanística entre eles e muito menos tiveram em atenção a requalificação do espaço urbano pré existente, onde habitam milhares de cidadãos, tão caldenses quanto os da “outra” cidade, no entanto sempre relegados para segundo plano.
A construção dos referidos equipamentos, como que “plantados” ao acaso, em função do espaço disponível, sem ter em atenção preocupações de integração urbanística, acabaram por ser uma oportunidade perdida de requalificação do espaço habitacional constituído pelos tais bairros, cuja interligação ficou por fazer e mais uma vez adiada a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
Recentemente a pretensiosamente chamada “regeneração urbana”, no valor de dez milhões de euros, ignorou mais uma vez aquela metade da cidade, concentrando todos os recursos do outro lado, como se aqueles caldenses não o fossem tanto como os outros. Sem qualquer explicação aceitável, foi mais uma oportunidade perdida e os habitantes, esperam e desesperam, como se de cidadãos de segunda se tratassem.
Por outro lado e se dúvidas houvesse, os consecutivos episódios da água preta fornecida pelo município, que lhes corre nas canalizações e que se arrastam há anos, diz bem do alheamento do município em relação ao outro lado da “linha”.
Alheamento que fica bem patente na recente iluminação natalícia, em que todos os recursos se concentraram num dos lados da cidade, como se do outro lado, apenas existissem umas quantas rotundas merecedoras de iluminação. O “esquecimento” não é ocasional, porque se repete ano após ano. O Natal em Caldas da Rainha, afinal não é para todos.
Com um espaço urbano desqualificado, as questões de mobilidade urbana, se de um lado são pouco atendíveis, do outro são desprezadas, com passeios subdimensionados, em mau estado generalizado, com inúmeros obstáculos a tornarem-se intransponíveis, por quem tenha maior dificuldade de locomoção.
Podíamos continuar a abordar outras questões, como a limpeza ou o tratamento de espaços verdes, que na realidade não existem tão pouco. Ou mesmo questões de segurança, onde é do conhecimento público, a existência de “guetos”, cuja integração há muito devia ter sido resolvida e não é sequer, motivo de qualquer atenção ou preocupação, por um Município que tem a obrigação de gerir o espaço público da cidade e promover o equilíbrio social, eternamente adiado.
Estamos de facto perante duas realidades distintas, separadas por uma linha férrea, em que por acaso tivemos a sorte de ver várias propostas de ligações, estudadas e apresentadas publicamente pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Coimbra, mas que o Município, como sempre, não só não aproveitou, como ostensivamente ignorou.
E assim, as tais assimetrias, ao longo dos anos não se esbateram e entretanto as promessas de soluções, sucedem-se ao mesmo ritmo dos sistemáticos adiamentos.
Não há identidades, nem realidades iguais, mas é obrigatório um tratamento idêntico, que não existe por parte do Município.
Há de facto uma linha que separa duas cidades.
Rui Gonçalves
rgarquito@sapo.pt