10. Desenhar é uma relação

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1.Tento um exercício difícil da imaginação num tempo preenchido por imagens sem origem e sem espaço entre elas. Talvez a dificuldade deste exercício resida na inexistência de intervalos entre elas, ou melhor, de serem uma densidade onde nos encontramos imersos – uma esfera gigantesca que já ocupa o espaço cósmico. O exercício é aceitar que esta densidade é do tempo e não está contra ele, pois isso significaria estarmos contra o nosso tempo. Os nossos sentidos admitem-nos neste mundo e fornecem as sensações, que a mente de cada um transforma no que pode. Digo pode, porque a mente de cada um, por vezes, parece distribuída entre muitos e sem relação com as coisas do mundo, na sua variedade e intensidade e, por essa razão, incapaz de selecionar e ordenar de entre essas imagens sem origem. As sequências e as transições, a porosidade dos limiares das imagens, fazem parte da construção de quem somos em cada momento, colocando-nos, indivíduos, numa esfera de muitos. Talvez a educação do olhar seja mais importante do que nunca: treinar o olhar de cada um para atribuir significado às sensações.
2.Estamos no fim de 2021, motivo desta interrupção para um muito pequeno e bastante conveniente balanço da vida editorial – este ano foram traduzidos e publicados dois livros sobre a vida em comunidade, valorizando as sensações privadas e a intensidade do mundo: A aparência das coisas, de John Berger e O apoio mútuo, de Piotr Kropotkin.
3.A expressão das sensações é um modo de relação que cruza interesses subjetivos, comuns ou divergentes, em torno do mundo comum das coisas mais ou menos sólidas. É um modo de relação que admite os outros a partir do lugar onde se encontram, pois indicia um espaço comum – matéria negra que sustenta as comunidades. Imaginemos que uma definição dessa matéria negra são as imagens, as coisas que constituem o espaço comum.
Desenhar é uma relação: “Ao olhar para o modelo, maravilhou-me o simples facto de ele ser sólido, de ocupar um espaço, de ser mais do que a soma das dez mil visões dele próprio a partir de dez mil pontos de vista diferentes. Esperava que o meu desenho, que obviamente era apenas uma visão a partir de um só ponto de vista, acabasse por deixar entrever esse número ilimitado de outras facetas. Mas agora tratava-se simplesmente de construir e refinar as formas até as suas tensões começarem a parecer-se com as que eu podia ver no modelo.” (John Berger) ■

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