Fogos e ocorrências
Na Mitologia, o fogo era um castigo divino, vindo do céu. Prometeu roubou o fogo aos deuses para o oferecer aos Homens e estes parecem agora espalhá-lo pela terra, castigando-se a si próprios terrivelmente.
A dimensão dos incêndios e o saldo dramático de vítimas não permitiu aos responsáveis disfarçar e menorizar a gravidade da situação. No entanto, não deixaram de tentar – nos seus discursos, a escolha das expressões utilizadas foi deveras significativa: as palavras «incêndios» e «fogos» foram quase sempre substituídas por «ignições», «deflagrações» e sobretudo por «ocorrências», que é de todas elas a que mais se afasta da ideia de chamas. Estes expedientes não são novidade. Há alguns anos, aquando do naufrágio, na Galiza, do petroleiro Prestige, poluindo o mar e toda a costa com toneladas de crude, as instruções do governo de Aznar eram que nunca se falasse de maré negra mas apenas de derrames.
Em Portugal trata-se da crónica de desgraçadas anunciadas. Em 2003, Carlos Carvalhas fez uma intervenção na Assembleia da República que, infelizmente, poderia adequar-se, por completo, ao ocorrido em 2017. A crítica aos sucessivos governos que, por arrogância desinteresse e incompreensões várias, foram criando impasses, agravando assim um quadro geral já de si calamitoso, a recusa em reforçar os meios de apoio aos Bombeiros, as medidas propostas pelo PCP, chumbadas primeiro e repegadas depois pelos mesmos que, de início, as tinham recusado, ou então aprovadas por unanimidade mas nunca aplicadas, quanto ao ordenamento florestal, prevenção, vigilância, a denúncia do desmantelamento dos meios de combate a fogos aplicados na Força Aérea e a opção por delegar essa missão de crucial importância em empresas privadas (cujos interesses nem sempre são coincidentes com o interesse geral), opção essa que se viria a revelar frágil, vulnerável e desastrosa em termos práticos e, em termos financeiros, ruinosa para o Estado, são pontos que se mantêm absolutamente actuais. Que se retirassem ilações, pedia-se então…
Nestas alturas somos assolados por uma chusma de ditos especialistas, comentadores e quejandos que vêm apregoar aquilo que, de há muito se sabe estar diagnosticado e identificado. É tempo de passar à prática, contra as pressões lobísticas associadas aos negócios turísticos e imobiliários, contra a poderosa «indústria do fogo», contra os políticos que liberalizam a plantação de eucaliptos ao mesmo tempo que eliminam brigadas de sapadores florestais e acrescentam cortes de recursos, contra as decisões obscuras que permitiram que um estratégico e imprescindível sistema integrado de comunicações tenha sido fornecido por uma instituição bancária (?!), cobrando por isso muitos milhões de Euros, para afinal se revelar um clamoroso falhanço. É intolerável que ninguém seja responsabilizado! E, por falar nisso, importa também uma investigação rigorosa sobre a origem dos incêndios, dado que não se trata apenas de causas naturais, piromania de gente psicótica que deve ser internada ou incúria (a incúria existe, sim, mas é em grande parte dos governos!); existe também mão criminosa organizada e com grande sofisticação. O fogo na mata nacional do Pinhal de Leiria é um dos que indicia premeditação. No nosso concelho, é algo inexplicável que surja, ao anoitecer, um fogo na orla marítima. É devido, sem qualquer dúvida, um enorme elogio á abnegação e competência dos Bombeiros Voluntários de Caldas da Rainha e ao extraordinário trabalho operado neste período tão difícil.
Os incêndios ocorridos no nosso país não foram uma mera «ocorrência» mas sim uma tragédia mortal e representam uma ferida aberta na nossa memória e consciência colectivas que jamais sarará.