Conto A-dos-Tolos

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Gazeta das Caldas
| D.R.

A aldeia de A-dos -Tolos fica entre a serra e o mar. Pouco conhecida, embora o vale onde se espreguiça seja verdejante e bonito. Não tem monumentos de que se orgulhe ou que atraiam visitantes. Ficou ali esquecida ao longo dos séculos. O estradão de terra que vem lá de cima do Outeiro do Diabo desce veloz para o largo da Tasca dos Sócios e volta a subir para o Outeiro da Santa. No primeiro dos referidos outeiros há uma mata de pinheiros mansos, no Outeiro da Santa outra de castanheiros. O senhor Serafim é o dono da tasca onde às tardes longas de verão se sentam os sócios a jogar a bisca lambida ou um torneio de damas. Na frontaria da tasca está plantada uma vinha que estende os ramos retorcidos por entre umas traves de castanho ali mandadas colocar em tempos idos, e que são guias de onde despontam no final de verão uns cachos de uvas miraculosamente saborosos. Importante é a sombra dourada que a parreira dá às mesas e cadeiras onde os sócios lançam as sortes no arriscado jogo de cartas onde se aposta a feijões.
O Piteco é o cão de guarda da tasca dos Sócios. Assim chamado porque quando era cachorro e ainda não tinha sido adotado, um forasteiro que por engano entrara em A-dos-Tolos, lhe chamara o comprido e confuso nome de “australopiteco”. O Senhor Serafim anotou, a lápis, a alcunha dada ao dedicado bicho que se lhe vinha diariamente chorar para as portas da tasca. E ficou a matutar. Que quereria aquilo dizer? Perguntou a cada um dos fregueses que ia chegando para a bica, curta ou comprida, animada ou não por um dedal de brandy, se conheciam aquela palavra que lhe lembrava, sabe-se lá porque estrombólica associação de ideias, o Tio Fagundes, que dizia sempre que estava com bom astral quando vendia alguns borregos ao Talho Cifrões,da cidade.
Nada, não. Nenhum dos fregueses sabia lá o que era isso de astrombiteco ou estralumpiteco. Mas todos acordaram em começar a chamar Piteco ao cachorro castanho malhado de branco, que ficou apadrinhado pela aldeia e ao qual o Sr Serafim deu guarida, malga de comida e água fresca na sua casa. O Sr Serafim era casado com a dona Josefa, muito senhora do seu nariz e do seu avental de riscado, muito avessa a faceirices, mas que se derreteu, qual queijo ao sol, aos olhos implorantes do meigo Piteco.
O cãozinho tornou-se de tal modo popular que era frequente os apostadores dos jogos de cartas, lhe atirarem com graça:
– Então , diz lá Piteco? Vamos a jogo ou vamos para casa?
E o Piteco a dar ao rabo de felicidade por pertencer a clube dos humanos.
Debaixo da parreira da tasca, nos dias longos de verão, também aparecem depois do jantar, uma roda de amigas, quase todas elas casadas com os jogadores de cartas. Sentam-se numa mesa desviada da dos companheiros tresloucados pelas mãos cheias de feijões que esbanjam no jogo cerrado. Preferem conversar sobre as modas que a televisão lhes mostra lá das cidades. Riem do despautério das saias ora curtas ora a varrerem as esplanadas. Riem das cabeleiras tesas ou esticadas que não se acomodam ao sabor de ventanias que as fustigam.
A dona Josélia é a mais verrinosa das vizinhas_ para ela tudo é motivo de troças e risos e o jeito para imitar as formas de falar e os sotaques das pessoas importantes que lhe entram pela casa a dentro nos noticiários da TV são esperados com satisfação do dever de arrumar a casa cumprido, ao fim dos dias de trabalho pautados pela sinfonia dos ventos que do Outeiro do Diabo sopram para o Outeiro da Santa.
E foi a propósito dos dois outeiros que vigiam a aldeia, quais sentinelas de guarda às tropas dos afrancesados, que um dia a dona Josélia teve uma das suas mais famosas tiradas.
– Contou-me a minha Avó Matilde, que lhe tinha contado a Avó Telma, que quando as tropas dos franciús por aqui passaram a caminho de Lisboa e quiseram mandar as portas abaixo para se aboletarem nas nossas camas e adegas, o então regedor da freguesia e os dois cabos da guarda lhes explicaram que aqui nesta aldeia, entre o Diabo e a Santa, viviam os tolos que tinham sido enviados de Lisboa, de um tal Hospital de S. José, para acabarem os seus dias fora das vistas das pessoas de bem. Entretanto dera ordem para todos os nossos antepassados estarem bem esfarrapados às portas, uns a rir outros a chorar, uns a rezar outros a praguejar, mas todos, todos gaguejavam tais eram os soluços dos risos que os acometiam ao verem aqueles estrangeiros assim tão bem enrolados.
E a tropa dos franciús deu às de Vila Diogo com medo dos tolos!
Beatriz Lamas Oliveira
blamas599@gmail.com