UM LIVRO POR SEMANA / 482 / «O fluir do tempo – Poesia reunida» de Manuel Simões

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jose do carmo francisco
| D.R.
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Binder2_Page_20_Image_0001«Talvez o tempo não passe» é um verso que pode servir para uma aproximação. Manuel Simões (n. 1933) viveu em oito lugares e cultivou dez ofícios; entre os lugares e os ofícios está presente o fluir do tempo.

Ferreira do Zêzere, Tomar, Leiria, Coimbra, Lisboa, Bari, Veneza e Amadora são os lugares por onde passou o poeta, o tradutor, o ensaísta, o professor, o jornalista, o editor, o blogger, o antologiador, o bancário e o empregado de escritório. Dez traduções, três antologias, oito ensaios e seis livros de poemas juntam-se à Editora Nova Realidade (Tomar) e ao ensino em Lisboa, Bari, Veneza e Florença. O autor é homem de errâncias que é um título de um seu livro de 1998. A poesia de Manuel Simões parte da memória: «A memória é um rio, dilacera-se contra as margens aluídas do tempo. A memória é povoada, marcada por antiquíssimas ordenações e códigos, modos ou motivos desta dor que noite a noite se desdobra sobre o sono perturbado do homem.» A memória pode ser colectiva em Coimbra: «Dizem os antigos que as barcas serranas desciam então o leito, penetravam dentro da cidade com sua lenha e carqueja e que as mulheres de Ceira, estas tímidas mulheres de negro, traziam nelas as suas trouxas de roupa.» Em ambos os casos a memória dá lugar à revolta que se ergue como no caso da ceifeira: «Ceifeira / levanta a foice / não dobres tanto a cintura. / Quem trabalha / a terra alheia / não pode usar / a ternura». A revolta dá lugar à canção como em José Afonso: «Houve um tempo em que vieram os cantadores de mitos com as suas violas de desespero. As cordas vibravam, tensas sob os dedos. Era o canto ou a mágoa diluindo-se contra as pedras, o folclore de súbito inventado. Um som inesperado interrompeu então o artifício, o hábito antigo. Mas o povo andava ainda longe e longe, nos seus ofícios de subsistir.» Ou então à música como Carlos Paredes: «Era um tempo dividido: / manhãs de cinza, tardes de euforia. / Era um tempo de litígio / noites clandestinas, sinais de asfixia. / Como esquecer-te guitarra de verdes / ramos rompendo a monotonia. / dor do passado, saudade do futuro / ferida aberta em som tão puro. / Verdes anos que a música prometia: / Como ave antiga, o canto nos trazia.» E de tudo isto o poeta faz a sua teoria da composição: «O artífice imerge / as mãos na matéria / avulsa a transformar. / Sem artifício investe / o próprio corpo no acto / preciso de plasmar. / Seja a matéria / argila, aço ou palavra / espúria a desbastar. / Do ofício extremo / resta o resíduo: densa / e intensa arte de amar.» Trata-se de amar: toda a poesia envolve o acto de amar pois só o amor pode responder à morte. Esse amor pode ser triste como na página 157: «Ai dos fracos de espírito, adora- / dores do consumo como ideologia. / Deles será a terra prometida /crescendo à sombra dos telefilmes, / dos centros comerciais onde a vida / não se mede com inteligência. / Deles será o paraíso às avessas / a desumana ordem que tudo banaliza. / Ai dos fracos de espírito, privados / cruelmente do poder da consciência.» Mas pode ser um amor feliz como na página 103: «Havia um pelourinho na praça principal. Redondo, / com nervuras, estilização de um homem ou, quem sabe, / de um totem. Nem parecia ser antigo na sua função / de morte. Conserva quatro braços em forma de dragão /O mecanismo do medo. No lado oposto, um edifício /branco que outrora foi igreja. Tem janelas com grades, sinais de inimizade. Sobre os ferros das grades uma bandeira / branca: na prisão de Arraiolos, na tarde sem sombra, / flutuava livre e solta uma bandeira branca.»  (Edições Colibri, Capa: Raquel Ferreira, Prefácio: Ettore Finazzi-Agrò, Posfácio: Sílvio Castro, Textos: Mário Cláudio, Fernando J.B. Martinho, Roberto Vecchi)

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