Fome de justiça

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Se somos o que comemos, como dizia Hipócrates, o que somos quando não temos o que comer? A fome – arquitetada e imposta – é a arma mais sádica do governo de Israel na sua campanha de extermínio dos palestinianos. Em 20 meses, ataques incessantes de uma das forças armadas mais poderosas do planeta, e potência nuclear, contra civis encarcerados já eliminou centenas de milhares de pessoas. Ao continuar a negar acesso à comida e à água, submete homens, mulheres, crianças e bebês a uma morte lenta, com requintes de crueldade. Isso, quando não fuzila aqueles que, desesperados, teimam em buscar alimentos.

Além do bloqueio, Israel conduz uma política de terra arrasada – transforma também a área agrícola de Gaza em destroços, e avança pelas terras da Cisjordânia ocupada a arrancar árvores, queimar plantações, invadir. Devastador em todos os sentidos, principalmente tendo em conta que a Palestina é um país com raízes profundas na agricultura.
Enquanto na terra ancestral o prato do dia é a fome forçada, proliferam nas redes sociais milhares de vídeos de culinária palestiniana. Parece dissonante mas é a diáspora reagindo, ciente de que um projeto colonizador etno-supremacista – como o sionismo – age em várias frentes. Uma das formas de apagar um povo é por meio da apropriação cultural. E a Antropologia ensina-nos que comida é cultura, é memória, é identidade.

Em junho, três palestinianos receberam o James Beard Award 2025 – uma das premiações internacionais mais prestigiosas das artes culinárias. São eles: o influencer e cozinheiro comunitário de Gaza, Hamada Shoo, a escritora e jornalista Laila El-Haddad, e o escritor e poeta Mosab Abu Toha – os dois últimos radicados nos Estados Unidos.

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No discurso proferido na entrega do prêmio, El-Haddad disse que neste momento, “em que Israel usa a comida como arma de genocídio, cozinhar tornou-se mais do que memória e sobrevivência. É uma forma de afirmação da vida em si. Um ato de rebeldia”. O texto premiado tem como título “Uma cozinha sitiada”. O ensaio é uma homenagem à tia Um Hani, que a ensinou a cozinhar e que foi assassinada com os filhos em um bombardeio israelita, antes que tivesse tempo de passar à sobrinha uma receita da avó.

Assim como os vídeos nas redes sociais, são muitos os novos livros de receitas palestinianas. É a forma como uma geração de chefs e escritores tenta barrar o apagamento e a apropriação cultural pelo colonizador invasor. Na contramão, nota-se um esforço de promoção de uma “culinária israelense” na cena da restauração internacional nas últimas décadas. Na maioria das vezes, reivindicam, como seus, pratos da culinária tradicional árabe. De países como Palestina, Líbano, Síria, Iêmen – não por acaso, todos na mira dos F-15 e F-35 de Israel.

Em sua conta no Instagram, o chef palestiniano-londrino Sami Tamimi, que acaba de lançar o livro Boustany (Meu Jardim), reconhece ser difícil falar de comida face ao genocídio. Mas necessário.

“Escrever sobre nossa comida é dizer: nós temos nomes, sabores, avós, oliveiras, especiarias, rituais. Nós temos alegria, profundidade e memória. E isto não desaparece, por mais que eles tentem… Nós temos que continuar a falar da Palestina… Nós levamos este legado adiante, em cada história, em cada prato, em cada página.”

Se somos o que comemos, que seja servida justiça.

Palestina Livre Caldas

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