A contra capa deste recente livro de Carlos Querido (n.1956) que marca a sua estreia no mundo do conto refere uma frase de Gustave Flaubert mas esta poderia se de Federico García Lorca; num dos seus poemas, o poeta da Andaluzia e do Mundo escreve: «A vida não é nobre nem boa nem sagrada». Depois de livros anteriores como «Salir d´Outrora», «Praça da Fruta», «A redenção das águas» ou «Príncipe Perfeito», a geografia caldense está presente neste livro de micro-contos com 126 páginas cujo título emerge da narrativa nº 29. De facto Salão Ibéria, Cinco Bicas, Parque, Praça e Camaroeiro Real são referências e lugares que só existem em Caldas da Rainha.
Embora não surja no livro de modo óbvio há em Portugal uma tradição de textos do absurdo em autores como Santos Fernando, Ernesto Lela, Orlando Neves e Júlio César Machado que, num certo sentido, são os «antepassados» de Carlos Querido. O horizonte da vida dos protagonistas é, em geral, monótono e repetitivo («Eu tinha uma vida discreta e cinzenta, um pouco apagada») e não por acaso surge o fascínio dos poços sem fundo como o do Rio Arnóia (Lagoa de Óbidos) ou dos Açores: «Que estranho rugido era aquele? Aproximou-se e verificou que emergia das profundezas do planeta, vindo do princípio dos tempos e se expandia por uma cavidade que certamente não teria fim.»
No conto «A herança» a estranheza é de outra ordem: há um crime cometido por alguém e o «morto» surge nos sonhos da filha de seis anos do protagonista: «mamã, papá, desenhei o monstro que aparece nos meus sonhos». Era Manuel Carriço, como não podia deixar de ser. Um outro aspecto que ajuda a dita estranheza é o uso de algumas palavras como por exemplo gurita (123), Rilhafoles (105), insígnias (15), lar (43) ou jesus (91) quando poderia ser utilizado outro vocabulário: guarita, Miguel Bombarda, galões, Lar ou Jesus. Trata-se de uma opção do autor que não por acaso cita Herberto Helder na página 47: «Diria o poeta que se quisesse enlouquecia.» Estamos perante um belo livro dum autor eclético pois junta à capacidade da escrita de livros anteriores a sabedoria e a capacidade do poder de síntese. Passa da extensão à brevidade mas mantendo o fio, o toque e a linha da qualidade.
(Editora: Abysmo, Capa: Sal Nunkachov, Revisão: Noémia Machado)